quinta-feira, 20 de julho de 2017

A Escolha

Seu Geraldo abriu a porta de sua minúscula casinha, cercada por árvores e plantas, como fazia todos os dias. Respirou profundamente o ar fresco, abrindo os braços, cumprimentando o sol. Em seguida, voltou-se para dentro, onde fervia a água de seu café. O cheirinho do pó lhe trouxe o prazer de todas as manhãs, quando separava sua caneca favorita, sentava-se no degrau pertinho da porta, meditava e se preparava para o contato com o mundo. Era assim, depois dos 50, que refletia sobre a vida, hábito que vinha mantendo. Alguns diriam na mais absoluta solidão, mas não era assim que Seu Geraldo se sentia. Pelo contrário, sentia-se imensamente grato pelas experiências que o haviam trazido até ali.
Posicionou a caneca no degrau e sorriu ao pensar na ousadia de buscar seu próprio espaço, realizando seus ideais, decidindo seu destino. E, inspirado talvez pela brisa suave e perfumada, pensou em seu crescimento, nem tanto materialmente, de acordo com a visão de alguns, mas também nem um pouco medíocre. Os bons momentos estavam registrados em cada célula, onde sentir-se poderoso sempre ditou as regras, incluindo a contestação do que não achava correto. Tinha conhecido algumas de suas várias faces, nem sempre santo, mas parte de seu amadurecimento, onde aprendera a integrar a espiritualidade e seus valores, da maneira mais humana que sabia. De olhos fechados, numa espécie de transe, lembrou-se dos inúmeros projetos fertilizados, dos rompimentos de prisões controladas por corações egoístas e de como livrou-se de boa parte, passo a passo, daquilo que não tinha mais sentido em sua também mais humana interpretação. Nem tudo tinha sido perfeito, mas conseguiu abrir caminho para renovações, enfrentando desafios e obstáculos, apesar dos medos e inseguranças que achava não ter negado, procurando não machucar o que estava ao redor, se fosse possível. Nem sempre havia conseguido, mas perdoava-se por isso. E agora, um novo ciclo o mantinha envolvido por aquela solidão que cura, que não paralisa diante do medo de olhar para si mesma, ele pensava. Entendia que lá no fundo da alma, outros valores lhe trariam a posse de novos desejos, livre agora para escolher e viver o que quisesse, e o que ainda pudesse, sem as restrições dos que privilegiam projetar falsas imagens ao longo da estrada. A força agora vinha dessa solidão, que gerenciava, à sua própria maneira; das incertezas, incluindo aí voos altos e parcerias de outras dimensões. Estava cuidando de seus interesses, finalmente, procurando associar-se à luz, aquela que realiza nosso potencial divino, seja lá o que isso queira dizer. Saboreou o café, e bons observadores perceberiam o sorriso que se manifestou junto ao olhar brilhante.
Seu companheiro se aproximou, o fiel cãozinho, que balançando o rabinho deitou-se ali, à espera das mãos carinhosas que sempre o afagavam. Iriam daqui a pouco caminhar juntos e cuidar das plantas, e em seguida sairiam à rua para um passeio gostoso. De olhos fechados, Seu Geraldo permitiu-se alçar voo, e suavemente deixou-se levar...
Vestida de coincidência, passando ali pela porta, inocentemente, ele viu uma mulher. Não uma mulher comum,  daquelas que trazem mais zona de conforto para a vida de um homem, mas aquela que havia sido sua grande paixão há anos atrás. Bem que ele tentou evitar, mas ao mesmo tempo, uma força cheia de curiosidade o empurrou para o encontro, ou melhor, reencontro, com a musa de seus pensamentos mais orgulhosos. Então, ela sobrevivera. E estava cheia de brilho, encantadora, sedutora na sua fase madura. Seu coração bateu forte ao abraço impulsivo que os dois deram, sem sequer um pensamento invasor que atrapalhasse aquela transmissão amorosa, atrasada, é verdade, mas ainda assim quente. E como! Palavras e comentários sem grande importância, das que usamos em reuniões onde queremos ser simpáticos e educados, moveram esses poucos minutos que se esgotaram rapidamente. Seu Geraldo se transformou. Nada permaneceu morno a partir de então. A sublime paz inicial deu lugar aos tais novos valores aos quais nos referimos anteriormente. Memórias que andavam estagnadas vieram à tona, e a primeira coisa foi rever, ali mesmo, sua imagem no espelho que andava embaçado pela falta de uso. Reparou que havia envelhecido, nenhuma novidade, mas agora isso lhe doía. Não encontrava mais dentro de si a coragem e a ousadia de que tanto se vangloriava. Não sabia como aplacar esse amor que ainda vibrava em seu coração, e que, como um gênio aprisionado na garrafa, ao ser solto, procurava expandir-se, manifestar-se. E agora? De repente, num desses impulsos que chegam sabe-se lá de onde, se viu correndo, abrindo novamente a porta e indo atrás da mulher de seus sonhos, que milagrosamente o esperava do lado de fora. Ficaram os dois frente a frente, os olhares se transformando em ímãs para um beijo tardio.
Surpreso com as lambidas carinhosas de seu amiguinho, Seu Geraldo despertou do devaneio. O voo havia terminado, e novamente a queda de cada dia, que nunca superou,  o chamava para levantar-se e prosseguir. Acariciou mais uma vez seu cãozinho, e ali ficou, morno, respirando o tempo perdido, os passos que não foram dados, a tal solidão que cura. E resignado, recolheu a caneca de café, enquanto recolhia também as lágrimas que poderiam desafogar-lhe a alma. A mensagem vinda dos recônditos não alcançara seu alvo? Será? Parece bem mais com uma escolha, daquelas que ofuscam o brilho da vida, mas ainda assim direito de todos nós.

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