quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Histórias do Ó

Era uma dessas bestas que carregam as pessoas de Porto de Galinhas para Nossa Senhora do Ó e Ipojuca. Costumam funcionar na base dos gritos estridentes de um adolescente em plena fase de mudança de voz, que fica chamando, a cada esquina, os passantes que têm cara de candidatos a passageiros. Inflamam os nervos e ouvidos dos inocentes que estão dentro do carro, porque têm como filosofia encher o veículo sempre, de modo que saiu um, entra outro. Ou seja, os gritos são contínuos, e cabe aqui lembrar que a condução percorre cada cantinho do município, dando voltas e mais voltas em busca de suas vítimas.
Mas, como eu dizia, entrou uma mulher apressada, infelizmente sem alternativa melhor para chegar ao seu destino do que passar por essa iniciação. Apertou-se como pôde num cantinho, procurando não pensar em como caberia tanta gente naquele carro, e tentando esquecer o contato desagradável, não consentido, daquela pequena multidão que estava sendo empilhada próxima ao seu colo. A música falando de beijos de língua, cantada no rádio a todo o volume, bastante constrangedora, enfeitava a tarde quente e ensolarada que prometia uma viagem daquelas... Ao seu lado, bem coladinha mesmo, sentou-se uma moca com seu lindo bebezinho no colo. Faminto, diga-se de passagem. A mãe zelosa imediatamente abriu a sua blusa, consciente de que nada nesse mundo impediria um ato tão sublime de se realizar. O bebê de lindos olhinhos arregalados fez um biquinho e iniciou os trabalhos. O leite era sugado em harmonia com o balanço do carro, e ao som do Recife-Cabo-Ipojuca, quem vai. A música havia mudado, e agora falava de uma mulher que ficaria nua para alguém, provavelmente um namorado meio escorregadio. O leite também estava escorregando goela abaixo da criança, até que alcançou o seu limite e voltou às origens. Num golpe de causar inveja a qualquer praticante de artes marciais, a mãe virou o bebê para a pobre moça, que distraída, recebeu um jato de leite azedo, regurgitado, dos pés à cabeça. Paralisada, ou melhor, horrorizada, questionou por breves momentos o sentido da vida, e chegou até a se lembrar dos seus estudos espirituais sobre a questão da realidade ser uma ilusão. O cheiro do leite azedo, entretanto, despertou-a de seus devaneios (já tinha pensado em enforcar o bebê com o cinto de segurança), e gritou: -Pare o carro!
Todos olharam, mas com aquele olhar típico de quem está assistindo um filme sem possibilidade de participação. O olhar de quem acredita que nada pode ser feito, de quem espera que as coisas se resolvam por si só. Enquanto o bebê sorria, satisfeito e meio adormecido, quase igual a todos os passageiros, a moça ia ficando cada vez mais desesperada, e enfurecida, fulminando a mãe, que justificava seu ato como instintivo, da mesma natureza que gerou o filho. A moça gritou novamente: -Pare, eu quero um posto! O motorista percebeu algo estranho (talvez o cheiro) e abaixou o rádio. - Não tem posto aqui, ôxe!. -Encontre um! ela berrou.
Depois de algumas voltas, uma torneirinha salvou a pátria. A moça desceu, lavou-se e às suas roupas, enquanto o veículo aguardava. E aguardou um bocado. Ela voltou toda molhada, e o motorista perguntou se ela pretendia sentar-se ali daquele jeito. -Claro!, respondeu. E sentou-se. E ninguém pareceu se importar.
A vida é isso, a gente tem que aceitar. No rádio, agora, alguém contava uma história triste de um jeito engraçado, choramingando a dor enquanto cantava.
E a moça foi secando as roupas durante o trajeto, secando também a sensação desagradável de viver circunstâncias idiotas, cercada pelo calor do sol, e por aqueles corpos estranhos já meio íntimos, abafada e abafando, enquanto o garoto reiniciava seu trabalho de gritar para o povo: -Recife-Cabo-Ipojuca!
A rotina daquela viagem se manteve, como a vida se mantém, apesar dos pesares. Os olhares continuaram distantes, mais gente entrou no carro, e também saiu. Inclusive a mãe e o bebê, envolvidos em sua hipnose existencial. E o rádio continuou na altura de sempre, desta vez falando da dor da solidão, na voz de mais uma mulher.

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