quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Acontece...


A vítima desse conto é uma adolescente, mineiríssima, vinda daquelas famílias que não dispensam o pão de queijo fresquinho na hora do lanche. Vivia numa cidade pequena, onde pessoas sonham com estudos em grandes centros, para que sua volta ao ninho seja num tapete vermelho, cheio de honrarias.Tinha seus cabelos longos, era bonita, e sonhava com namoradinhos, festinhas, embora o tapete vermelho também estivesse em seus planos. Seus cabelos eram seu orgulho. Todas as suas fantasias giravam em torno de movimentos capilares charmosos e arrebatadores. Juntou suas economias e resolveu ir a um salão de beleza.


Enquanto isso, Gilvanete, recém-chegada dos States, onde fez um curso de cabeleireiros, abria seu salão na cidade. Usava cabelos estilo “joãozinho”, amarelo ovo de supermercado, tinha pernas compridas em cima de saltos altíssimos, amparando um corpo grande e gordo. Decidiu cobrar baratinho, esperando atrair clientela.

Juntando a fome com a vontade de comer, a adolescente, através do telefonema que recebera de uma amiga, ficara sabendo da novidade: um novo salão. Descobriu o endereço (não foi difícil), e lá foi ela em busca de sua glória. Imaginou um outro corte, novo penteado, e feliz, saltitante, entrou no estabelecimento.

Foi muito bem recebida, mas achou estranho não sentar de frente para o espelho, e pensou, sei lá, vai ver que na América é assim. Confiante, entregou a cabeça a Gilvanete, que sorridente, atacou com a tesoura toda a parte da frente dos lindos cabelos da jovem, e manifestou ali, sua criação original: um modelito moicano quase máquina zero em cima, enquanto os fios laterais permaneciam longos, assim como foram longos os meses de recuperação da alegria e da vontade de viver da nossa heroína.

Chorando, desesperada, enquanto passava os dedos pela quase careca parte superior da cabeça, a menina voltou para casa. A situação era dramática...e engraçada. As pessoas na rua riam ao vê-la passar, dá pra imaginar?

Na escola, ela foi recebida com música homenageando sua coragem de sair de casa. As pessoas se dobravam de rir quando ela passava. Eu mesma, apesar de comovida, esboço um sorriso maroto enquanto escrevo. Sua mãe, cúmplice amorosa, seguiu a intuição da filha, que dizia que secar cabelos todos os dias ajuda no crescimento dos pelos. Onde será que a menina ouviu isso? De qualquer forma, a mãe zelosa foi ao centro comprar o secador, enquanto a família aprendeu a segurar o riso quando sentavam para comer os pães de queijo. Seus irmãos foram se acostumando com a situação, e até lhe compraram chapeuzinhos de várias cores, que ela usou por um bom tempo.

Quanto a Gilvanete, dizem as más línguas que seu salão durou até a primeira tintura que tornou azuis os cabelos da esposa do prefeito. Naquela época, isso ainda não era moda. Acabou se mudando para outra cidade, com seu diploma americano nas mãos, e começou tudo de novo. Êta, força de vontade dessa moça!

E a adolescente, ah, essa aprendeu uma lição, que serve para todas as mulheres. Não apenas que jamais devemos nos sentar de costas para o espelho, mas que antes de confiar cegamente em cabeleireiros...lembre-se... cabelos demoram pra crescer!

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Histórias do Ó

Era uma dessas bestas que carregam as pessoas de Porto de Galinhas para Nossa Senhora do Ó e Ipojuca. Costumam funcionar na base dos gritos estridentes de um adolescente em plena fase de mudança de voz, que fica chamando, a cada esquina, os passantes que têm cara de candidatos a passageiros. Inflamam os nervos e ouvidos dos inocentes que estão dentro do carro, porque têm como filosofia encher o veículo sempre, de modo que saiu um, entra outro. Ou seja, os gritos são contínuos, e cabe aqui lembrar que a condução percorre cada cantinho do município, dando voltas e mais voltas em busca de suas vítimas.
Mas, como eu dizia, entrou uma mulher apressada, infelizmente sem alternativa melhor para chegar ao seu destino do que passar por essa iniciação. Apertou-se como pôde num cantinho, procurando não pensar em como caberia tanta gente naquele carro, e tentando esquecer o contato desagradável, não consentido, daquela pequena multidão que estava sendo empilhada próxima ao seu colo. A música falando de beijos de língua, cantada no rádio a todo o volume, bastante constrangedora, enfeitava a tarde quente e ensolarada que prometia uma viagem daquelas... Ao seu lado, bem coladinha mesmo, sentou-se uma moca com seu lindo bebezinho no colo. Faminto, diga-se de passagem. A mãe zelosa imediatamente abriu a sua blusa, consciente de que nada nesse mundo impediria um ato tão sublime de se realizar. O bebê de lindos olhinhos arregalados fez um biquinho e iniciou os trabalhos. O leite era sugado em harmonia com o balanço do carro, e ao som do Recife-Cabo-Ipojuca, quem vai. A música havia mudado, e agora falava de uma mulher que ficaria nua para alguém, provavelmente um namorado meio escorregadio. O leite também estava escorregando goela abaixo da criança, até que alcançou o seu limite e voltou às origens. Num golpe de causar inveja a qualquer praticante de artes marciais, a mãe virou o bebê para a pobre moça, que distraída, recebeu um jato de leite azedo, regurgitado, dos pés à cabeça. Paralisada, ou melhor, horrorizada, questionou por breves momentos o sentido da vida, e chegou até a se lembrar dos seus estudos espirituais sobre a questão da realidade ser uma ilusão. O cheiro do leite azedo, entretanto, despertou-a de seus devaneios (já tinha pensado em enforcar o bebê com o cinto de segurança), e gritou: -Pare o carro!
Todos olharam, mas com aquele olhar típico de quem está assistindo um filme sem possibilidade de participação. O olhar de quem acredita que nada pode ser feito, de quem espera que as coisas se resolvam por si só. Enquanto o bebê sorria, satisfeito e meio adormecido, quase igual a todos os passageiros, a moça ia ficando cada vez mais desesperada, e enfurecida, fulminando a mãe, que justificava seu ato como instintivo, da mesma natureza que gerou o filho. A moça gritou novamente: -Pare, eu quero um posto! O motorista percebeu algo estranho (talvez o cheiro) e abaixou o rádio. - Não tem posto aqui, ôxe!. -Encontre um! ela berrou.
Depois de algumas voltas, uma torneirinha salvou a pátria. A moça desceu, lavou-se e às suas roupas, enquanto o veículo aguardava. E aguardou um bocado. Ela voltou toda molhada, e o motorista perguntou se ela pretendia sentar-se ali daquele jeito. -Claro!, respondeu. E sentou-se. E ninguém pareceu se importar.
A vida é isso, a gente tem que aceitar. No rádio, agora, alguém contava uma história triste de um jeito engraçado, choramingando a dor enquanto cantava.
E a moça foi secando as roupas durante o trajeto, secando também a sensação desagradável de viver circunstâncias idiotas, cercada pelo calor do sol, e por aqueles corpos estranhos já meio íntimos, abafada e abafando, enquanto o garoto reiniciava seu trabalho de gritar para o povo: -Recife-Cabo-Ipojuca!
A rotina daquela viagem se manteve, como a vida se mantém, apesar dos pesares. Os olhares continuaram distantes, mais gente entrou no carro, e também saiu. Inclusive a mãe e o bebê, envolvidos em sua hipnose existencial. E o rádio continuou na altura de sempre, desta vez falando da dor da solidão, na voz de mais uma mulher.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Passagem



Num minuto de tempo indefinido o passado se abriu,

E no mistério escuro da separação, recolheu seus pertences.

Deixou no seu lugar um espaço,

Que brincava de real e de ilusão,

Transcorrendo entre o presente e quase futuro,

Enquanto a solidão das perguntas apressadas

Chorava mansamente tristezas de adeus.

E às angústias, magicamente,

Aliaram-se os restos das paixões,

Avisando aos desavisados sobre a transformação.